Anabela Mota Ribeiro
António
Sampaio da Nóvoa, Magnífico Reitor da Universidade de Lisboa. Uma história que
talvez o defina, e que diz respeito à sua primeira tese de doutoramento: “A
tese tinha três grandes partes. Quando acabei a primeira fui chamado à
universidade de Genebra, ao comité de supervisão, e disseram-me: “A sua tese
está acabada”. Respondi: “Peço desculpa, a minha tese são três partes, só fiz a
primeira”, “Isto é uma tese em qualquer parte do mundo”. Para mim era
irrelevante. O meu projecto era aquele, lutei por ele, criei as condições para
o concretizar. A tese tem mil e não sei quantas páginas, em francês, teve de
ser toda escrita à mão, batida à máquina três vezes. Batida à máquina para a
discutir, depois para ser revista em francês, e por fim para a apresentação. Um
trabalho louco. Ninguém me obrigou”. Anos mais tarde, faria uma segunda tese.
O
mapa deste académico: Genebra, Madison, Oxford, Nova Iorque, Paris, Lisboa.
Cumpre o segundo mandato como reitor da UL, está empenhado nas comemorações do
centenário da instituição, tem uma contenda pública com o ministro Mariano
Gago. Não faz balanços sobre a sua obra. Concede que talvez tenha poder, mesmo
quando não ocupa a sala belíssima da reitoria onde nos sentámos a conversar.
(Comentámos os móveis desenhados por Daciano Costa. Foram ditas muitas coisas
entre parêntesis que aparecem assinaladas).
É
o tipo de pessoa que usa o adjectivo “forte” para qualificar a sua relação com
as coisas e as pessoas. Tem um filho e é casado.
Fez
dois doutoramentos, em Genebra e na Sorbonne. Começamos por aí?
O
meu primeiro doutoramento é de 1986, em Genebra, o da Sorbonne é recente. Fui
para Genebra no final da década de 70, Esses anos, centrais para a minha vida,
marcaram a minha formação académica e intelectual. Ainda hoje tenho dúvidas se
fiz bem em ter voltado.
O
que é que o fez voltar?
Houve
um episódio familiar muito importante, o nascimento do meu filho, que coincidiu
com o fim da minha tese de doutoramento. Mas há muitas opções que não sou capaz
de explicar pela razão. Vim.
Se
perguntar o que é que procurava, isso pode ajudar a compreender as razões que o
tentavam em relação a Genebra, ou as razões que, mesmo numa camada emocional, o
fizeram regressar.
As
minhas raízes familiares são muito fortes. É uma relação forte com o país.
Acredito que isso tenha sido central na decisão. Embora a decisão não tenha
sido uma verdadeira decisão. Quase tudo o que me aconteceu na vida não foram
decisões racionais – como se tivesse que ser assim.
Tanto
mais inesperado num académico.
Talvez.
As coisas foram sempre acontecendo, tanto na vida pessoal, como na vida
académica. A vinda para vice-reitor: estava nos Estados Unidos, na Columbia
University, o reitor telefonou-me, eu disse: “Porque não?”. Foi uma decisão
tomada em 30 segundos. A minha preocupação – é talvez a que me define melhor –
é a de tentar fazer o melhor possível aquilo que estou a fazer num determinado
momento.
Brio?
É
uma palavra boa. Também tenho um sentido muito agudo de bem comum. Desde que
sou reitor, a única pergunta com que durmo é: “Será que estou a fazer o melhor
possível para o bem da universidade?”. Atormentam-me pouco os conflitos, as
discordâncias.
No
meu pai esta dimensão é fortíssima. Olho para aquele homem e vejo na vida toda
uma tentativa de ser o melhor possível no lugar que se está a ocupar. Na minha
geração, penso que isso tem a ver com o brio e com a liberdade. Com a ideia de
que temos de fazer um país diferente, um país melhor. Tinha 18, 19 anos no 25
de Abril. O país é nosso, é nossa a responsabilidade, temos de fazer alguma
coisa por ele.
Novamente
Genebra. Há uma geração de exilados políticos, em Genebra, como Medeiros
Ferreira, António Barreto, mas é anterior ao 25 de Abril. E não é a sua
geração. Porque é que foi para Genebra naqueles anos?
Vou
fazer estudos na área da História e da Educação. A rigor, uma parte importante
da pedagogia portuguesa passa por Genebra. Esse grupo de exilados: já não
conheço em Genebra, mas conheço o único elemento do grupo que fica, o Carlos
Castro de Almeida, que estava na Organização Internacional do Trabalho, e de
quem me torno amigo. É em casa de quem vivo uma parte da minha estadia em
Genebra. Eu tinha a certeza de que queria sair de Portugal.
Foi
numa altura em que havia um empenhamento geracional, de reconstrução do país.
Mesmo assim tinha a certeza de que queria sair. Foi uma desilusão em relação à
convulsão dos anos do PREC?
Não,
foi uma necessidade de silêncio. A minha vida é pautada por uma necessidade
brutal de silêncio. Sou como o Jorge Luís Borges: imagino que o paraíso é uma
enorme biblioteca de livros. E estar sozinho no meio daquela biblioteca. O
primeiro ano que estive nos Estados Unidos, em 1993/94, foi na universidade de
Wisconsin, Madison. Apesar de Madison ser no Midwest, no meio de nada, com
temperaturas de graus negativos durante meses, tinha uma biblioteca central
fantástica. Estava aberta 24 horas, tinha vários andares, corredores imensos
onde não havia ninguém, e onde passeávamos em acesso aberto. Chegava à uma,
duas da manhã: “Ainda estou aqui metido…”.
Não
sou pessoa de convívio social intenso. Os anos que passo em Genebra são anos em
que não vejo quase ninguém.
Isso
significa, sem jantar em casa de amigos, sem participar em discussões,
regularmente? Era o oposto do que se vivia em Portugal, sobretudo naqueles anos
tão politizados em que tudo se passava na esfera pública.
Ainda
hoje, neste cargo como reitor, a parte mais difícil para mim é a parte social.
Faz parte do ofício, mas não há nada que me canse mais do que jantares, ter de
ir a uma recepção. Trocaria qualquer jantar social por cinco horas de trabalho
numa biblioteca.
É
também uma certa insegurança? Quando estamos num espaço público, há um mínimo
de sedução dos outros que é preciso fazer. Há uma personagem que acabamos por
encarnar. O que pode ser desafiador ou fatigante.
Creio
que não. Há uma dimensão de timidez muito forte, isso há. Esse ambiente social,
dos jantares a 20, são coisas em que circulo mal. Gosto do diálogo a dois, a
três. Dou-me razoavelmente bem com as multidões – a multidão permite anonimato.
(É desafiante ter de falar para muitas pessoas. Tenho ido muito ao Brasil nos
últimos anos, onde o meu trabalho ganhou uma dimensão surpreendente. A última
vez fiz uma palestra para seis mil pessoas. Não tenho nenhum pânico. É
inspirador e estimulante.)
Os
meus pais nunca cultivaram esse jogo social. É um ruído grande.
O
que é que se valorizava na sua família?, a inteligência, o saber, o
reconhecimento social?
Boa
pergunta. Teria tendência para dizer que era o trabalho.
E
não tanto a exigência em relação ao resultado?
Não.
O meu pai é juiz, a imagem que tenho dele é a trabalhar nos processos. A cultivar
o sentido de família, muito alimentado pela minha mãe. Eram famílias, do lado
do meu pai, nobres. Os meus avós tinham quintas, palácios, mas tinham sete
filhos, todos a estudar na universidade, em Coimbra. Não deve ter sido fácil do
ponto de vista económico. Na nossa casa sempre vivemos de forma muito contida.
E
a sua mãe, como é que ela era? O que é que valorizava?
A
minha mãe é um poço de energias, de afectos e de cuidados. O meu pai é da zona
de Famalicão, Guimarães, a minha mãe é de Valença do Minho, quase galega.
Casaram cedo. Os meus irmãos e eu (somos cinco) nascemos todos na mesma cama. A
minha mãe nunca trabalhou, o investimento principal dela foi sempre nos filhos,
netos, sobrinhos, primos, uma rede vasta. O lado religioso é muito importante
nela. Também é no meu pai, ainda que de maneira diferente.
Porque
é que não estudou Direito? Estou a perguntar porque é que não quis ser juiz.
Nunca
me pus a questão. O meu pai, apesar de não o dizer, gostaria que algum de nós
tivesse ido para Direito. Nenhum foi.
Porque
é que são estes os seus assuntos, a Educação, a Psicologia, a História?
Foram
sendo. A História tem uma razão óbvia: somos antepassados directos do Alberto
Sampaio, o amigo de Antero de Quental. Na quinta de que falava, havia o quarto
do Antero. Fomos educados desde muito cedo no fascínio do Alberto Sampaio, do
Antero de Quental, dessa geração de historiadores. Esse fascínio traz-me até
aos dias de hoje. António Sérgio é a pessoa que mais influencia a minha
trajectória de pensamento, e falando no Sérgio estou a falar de Antero de
Quental. (Vou descobrir uma autobiografia do Sérgio, em Genebra, que venho a
publicar.) Antes do Sérgio, a filiação é claramente no Antero. Depois do
Sérgio, a filiação é claramente no Vitorino Magalhães Godinho.
Apresente
melhor o seu antepassado, Alberto Sampaio.
É
um homem que nunca teve vida pública significativa, que não gostava de vida
social. Era recatado, calmo, muito diferente do Antero e do irmão dele, o José
da Cunha Sampaio, que foi também colega do Antero em Coimbra. Agricultor,
ligado à terra. Vive uma vida inteira de trabalho sistemático, para no fundo,
tudo resumido, escrever dois livros fininhos.
Não
é o seu caso. Tem uma obra extensa.
Mas
tenho uma pena disso que nem calcula.
Uma
pena?
Quando
se consegue ter uma vida para escrever um livro ou dois, consegue-se pôr nesses
livros um conhecimento, uma depuração, uma maturação dada pelo tempo. Hoje
temos uma produção científica, não quero dizer do enlatado, mas do escreve,
escreve, publica, publica. A tudo isto falta tempo. Adoraria ter escrito apenas
um livro ou dois. Se calhar é por isso que os livros do Alberto Sampaio
resistem até aos dias de hoje, enquanto os nossos não resistem uma semana.
Está
a fazer um bocadinho de género.
Estou
a fazer um bocadinho, mas não muito. A produção científica actual não resiste a
meia dúzia de meses. E ainda é preciso que alguém a leia.
Hoje
publica-se para construir carreira?
Acho
que é isso. Vivemos numa sociedade, e há aspectos positivos nisso, em que somos
mais autores do que leitores. Escrevemos mais do que lemos. Quando lemos, lemos
para escrever, lemos de forma instrumental, como apoio à escrita. Não lemos
como se lia no séc. XIX, no princípio do séc. XX.
A
opção pela História é muito forte. A opção pela Educação é menos óbvia, mas que
se justifica pelo sentido da responsabilidade social.
É
o lado político daquele que emergiu no pós 25 de Abril?
É.
Acabo por me encontrar, de uma forma completamente absurda, a dar aulas numa
escola de formação de professores, em Aveiro. A saída e a vontade de parar teve
a ver com a consciência muito nítida de que não tinha formação, não tinha
qualificações para fazer o que estava a fazer. Tinha que me formar do ponto de
vista universitário, de carreira, e Genebra apareceu.
O
que foi perseguindo foi o Saber, o Saber que está no meio dos livros. Primeiro
em Genebra, depois nos Estados Unidos, depois em Paris. Recapitulando, como é
que circulou nesta cartografia? O que é que o fez passar de um ponto para
outro?
Todas
as narrativas que fazemos sobre nós próprios são construções, e são de algum
modo invenções. Mas quando olho para a minha história acho que ela é feita de
uma série de acasos tremendos. A história da minha vinda para a Universidade de
Lisboa é porque encontro um senhor na Feira do Livro, o professor Albano
Estrela, que me conhecia de miúdo, e de quem me tornei amigo, e que me pergunta
o que é que andava a fazer. Digo-lhe que tinha acabado de fazer uma tese na
universidade de Genebra. “Hás-de mostrar-me a tua tese um dia destes”. Numa
altura em que as teses que fazíamos no estrangeiro levavam anos a ser
reconhecidas em Portugal, quando o eram. Tinham-me dito que a minha tese jamais
seria reconhecida em Portugal.
Um
parêntesis: contaram-me que uma pessoa chegou a Portugal com uma tese feita em
Harvard, e que esta não foi reconhecida na Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa. Parece uma história incrível. Afinal pode ter algum cabimento?, acha
que as universidades portuguesas são assim?
Agora
já não são, felizmente. Uma das mudanças mais revolucionárias que fiz na
Universidade de Lisboa – se calhar porque é uma maneira de resolver problemas
que eu próprio tive – foi que o reconhecimento de qualquer diploma europeu é
feito em 24 horas. A minha secretária só entrará por aquela porta por uma
razão: se houver um diploma desses para assinar. Tem instruções para
interromper qualquer reunião em que eu esteja, pode ser um júri de
doutoramento, se estiver em causa o reconhecimento de uma equivalência dessas.
Assino e a pessoa leva na hora.
Porque
é que era assim?
Os
chumbos eram sistemáticos. Tudo valia como argumento. Era uma maneira de
proteger a corporação que estava cá.
Levo
a tese ao Albano Estrela, sem grande esperança, e no dia a seguir de manhã, ou
nesse mesmo dia à noite, telefona-me: “Queres vir para professor da
Universidade de Lisboa?”. Eu disse: “Como? Não tenho tese reconhecida”. “Esta
tese, temos de a reconhecer. Se quiseres, vem já”.
Isso
acabado de regressar de Genebra.
O
que era mais normal, tendo em conta o meu percurso anterior, era que fosse
parar a uma Escola Superior de Educação, que estavam a começar a nascer.
O
que é que não foi acaso e o que é que resultou de uma determinação sua, de um
investimento nesse sentido?
Que
me lembre, nada.
Ainda
vai ser acusado de ser um diletante. Porque é que não teve de lutar por
qualquer coisa, porque é que não teve de se empenhar? Tinha a tranquilidade de
que alguma coisa havia de surgir?
Lutei
por muitas coisas na vida, em função do que me foi acontecendo.
Mas
não foi um estratega?
Não,
a minha vida podia ter acontecido de uma maneira completamente diferente. Foi
sempre investir no que me foi acontecendo. As decisões mais importantes que
tomei na vida, tomei-as em segundos, e sem ter bem a consciência de onde é que
me estava a meter.
Mas
confiante na sua intuição.
Confiante.
Há coisas que sei que posso fazer bem. E houve muitas outras coisas a que disse
não em segundos. Coisas tão fora do que gosto de fazer, do que sou, da minha
maneira de ser. Quando venho para vice-reitor, nunca tinha entrado neste
prédio.
Foi
em 2002. Qual foi o acaso que o trouxe cá?
Estava
em Nova Iorque, sossegadinho, a fazer o meu trabalho. Estive nos Estados Unidos
um ano e tal, dos Estados Unidos fui para Paris, mais um ano. Depois estive em
Portugal uma série de anos. Depois fui um semestre para Oxford e um ano e tal
para Nova Iorque, para a Columbia [University]. Na Columbia convidam-me para
ficar, mas não tinha dúvidas: sabia que não ia aceitar.
Columbia
é uma das mais reputadas universidades do mundo, porque é que tem a certeza que
não quer ficar?
Preciso
de estar em lugares que sinta que são a minha casa. (Há duas cidades que
ultrapassam tudo, Nova Iorque e São Paulo. São Paulo é uma cidade delirante,
mais até que Nova Iorque). Gostei imenso de viver em Nova Iorque, mas sentia-me
sempre num país estrangeiro. Talvez tenha a ver com a língua. Não penso em
inglês. Penso em francês.
Por
mais fluente que se seja na língua, é-se estrangeiro. De Genebra, regressou
quando teve um filho, e falou da base familiar. Os afectos são em português.
Esta dimensão da língua, e de as outras nos serem estrangeiras, acaba por ter
um peso significativo na sua vida.
Sim.
Estar em Nova Iorque foi uma maneira de alargar as minhas redes às comunidades
anglófonas, e passar a escrever e a publicar em inglês. (Ontem esteve cá um
grande amigo de Madison, que insistiu imenso para que eu voltasse, pelo menos
mais um ano). Mas para mim é o estrangeiro, não é a minha casa.
Porque
é que lhe assentam bem lugares de poder? Se não os procura, de qualquer modo
veste-lhes bem a pele.
Só
tive como lugar de poder, este. Fui professor da universidade. É um lugar de
poder? Talvez seja.
Sobretudo
se se trata daquelas universidades onde leccionou. Quando se tem o seu percurso
académico, tem-se poder.
Nesse
sentido, um poder de influência, de magistério.
Há
pouco falava das corporações de universitários, da maneira como se protegiam.
Há um poder que tinham e que não queriam dissipar. Claro que alguns professores
têm poder.
Sinto-me
uma pessoa mais do contra-poder do que do poder. A pergunta para mim é
estranha. O único cargo onde poderia ter tido algum poder, mas foi um cargo de
que gostei muito pouco, foi o de consultor do Presidente da República, do Dr.
Jorge Sampaio. Não gostei daquele ambiente. Tenho uma extraordinária relação
com o Dr. Jorge Sampaio, por quem tenho uma enorme admiração. Mas o lugar
concreto de consultor…
A
esse lugar foi dar como?
Um
dia estava em casa e telefonaram-me. Não tinha falado uma vez com o Dr. Jorge
Sampaio. Uma senhora disse-me que o Dr. Jorge Sampaio, que tinha sido eleito há
umas semanas, em 1996, queria falar comigo. Pensei que fosse um amigo a gozar.
A pessoa não se desmanchava, eu também não. Disse-lhe: “Muito bem, dê-me o
número de telefone que ligo para aí”. Telefonei e era mesmo verdade. Ele estava
no Forte de Catalazete, convidou-me e aceitei na hora. Depois verifiquei que
não gostava.
Diz
que, em rigor, o único cargo em que tem poder é este. Gosta de ser reitor?
Sabia
que me ia perguntar isso. A parte que tem que ver com o exercício do poder
propriamente dito, não gosto muito.
O
que é o exercício do poder propriamente dito?
Sou
uma pessoa de fazer. Uma crítica imensa que me fazem aqui, que é justíssima, é
que faço coisas demais como reitor. Não é porque queira concentrar em mim, é
porque sou mais de fazer do que de mandar fazer. Gosto de pôr a mão nas coisas.
Delego mal, e quando delego, delego mesmo. As pessoas que exercem melhor estes
cargos delegam acompanhando, são capazes de construir uma equipa. Não sou bom
nisso.
Porque
é que é melhor no contra-poder? O que é isso do contra-poder?
Se
me perguntar qual é o único valor que é indiscutível, é a liberdade, e junto
com a liberdade, a independência. A liberdade e a independência são por
definição qualquer coisa do domínio do contra-poder. São do domínio da
apreciação crítica, mais do que do exercício do poder. Dir-me-á que sou
ingénuo, mas a minha maior surpresa, nos anos que levo de reitor, é [constatar]
como as instituições, e as pessoas que dirigem as instituições, são tão poucos
livres, e tão dependentes das estruturas do poder. Tudo neste país está
dominado por mecanismos de contactos, redes de influências, pequenos poderes.
Isso
é a surpresa de quem vem dos Estados Unidos? Os Estados Unidos são o oposto
disso.
Talvez.
Nos Estados Unidos, nas universidades onde estive, as pessoas podiam ter opções
ideológicas diferentes, mas havia um respeito genuíno pela diferença e pela
liberdade académica. Já não havia respeito nenhum se uma pessoa fizesse um
esquema qualquer, para arranjar um financiamento ou para ter uma benesse. Em
Portugal, sobretudo desde que sou reitor, não vi outra coisa que não fosse um
respeitinho. O “respeitinho é muito bonito”, do nosso O’Neill.
Mas
também é o O’Neil que diz que “em Portugal a aventura termina na pastelaria”.
Isso ainda é válido, não há asas para voar?
Do
que estou a falar é mais deste modo funcionário de viver. Imaginava um país
mais liberto, mais saudável, menos dependente do telefonema, do e-mail, do
contactozinho, de prestar um serviço aqui e acolá. Imaginava as universidades
lugares de uma liberdade incondicional. Vejo-me mal nesse tipo de jogos.
Mas
quando diz, como disse numa entrevista ao Público, que chumbava o ministro
Mariano Gago tem plena noção do impacto que vai ter. Parece um desejo, ou pelo
menos uma acção consciente, de afrontar aquele poder.
Não
é aquele poder em concreto.
Aquele
poder é o poder que o tutela.
A
questão começa logo por isso: a tutela. As universidades não são tuteladas por
ninguém, são instituições livres. Sei que isso é utilizado noutra definição.
A
declaração: fê-la porquê?
Tendo
proferido algumas declarações mais críticas, elas eram justas, correctas.
Quando certas pessoas, certos governantes, saírem do poder – vão ser aqueles
que hoje os apoiam que vão ser os seus principais críticos. Não sei, não gosto
ou não me vejo a jogar esse jogo da bajulação, da pequena intriga. Em Portugal
isso é fortíssimo na área das universidades.
Vou
fazer outra declaração (depois podem dizer que é uma questão de afrontar). É
impressionante como a ciência está tão governamentalizada, tão dirigida por
mecanismos directos de influências, e como as pessoas vivem bem com isso. Estou
a falar de professores por quem tenho o maior apreço, grandes cientistas,
pessoas que poríamos na galeria dos nossos heróis. Não é o cientista medíocre,
mediano (esse até imaginaríamos que se submeteria a tudo). Tenho dificuldade em
perceber como aceitam tão facilmente esta espécie de domesticação quando chega
à questão do financiamento.
As
pessoas habituaram-se a que se abrirem demasiado a boca não têm dinheiro, se
não têm dinheiro não podem fazer obra. Em duas linhas fica resumido.
Mas
é triste. Se essa tese é verdadeira, é de uma enorme tristeza para todos nós.
Acha
que é verdadeira?
Acho
que é, infelizmente. Há uma frase do Mariano Gago, da primeira vez em que é
ministro, (era ministro da Ciência, mas não do Ensino Superior, do Governo de
Guterres), quando cria os Centros de Investigação Científica. Uma frase que
escreve num documento, em que diz que está a criar aquela estrutura para que as
pessoas se libertem dos departamentos universitários, e tenham “uma
interlocução directa com a Fundação para a Ciência e Tecnologia”. É um
eufemismo para dizer “interlocução directa comigo”.
Porque
é que acha que Mariano Gago tem sido um ministro tão consensual? É aquele que
há mais tempo está no poder. Quando vemos as sondagens, é dos ministros com
maior aceitação junto da opinião pública.
Acho
que é uma pessoa extremamente inteligente, com enorme experiência política e
que fez coisas importantes. Esse sucesso, a muitos títulos, é justo.
Deve-se-lhe muito, em muitos planos. Mas isso foi feito à custa deste tipo de
funcionamento, deste tipo de dependência. E foi feito em grande parte à custa
das universidades. Ele próprio reconhece que não tinha dinheiro para fazer as
duas coisas ao mesmo tempo. A opção foi desenvolver a ciência. Até admito, em
tese, que possa ter sido uma opção acertada para romper com atavismos e
corporativismos existentes dentro das universidades. Mas alguém que ocupa o
espaço da universidade não pode deixar de achar que isto é de uma enorme
injustiça.
Foi
tarde, mas houve neste último Governo uma mudança de política. Houve uma
tentativa de reaproximar as dinâmicas universitárias e as científicas, de
tentar que elas se integrassem. (No meu discurso de tomada de posse em 2006
peço um contrato de confiança com o Governo. A reacção é violenta. O ministro
disse que não há nenhum contrato possível, que os financiamentos são ano a
ano.) A crise interrompeu isso.
Quanto
tempo mais vai estar cá?
Essa
agora... [pequena pausa] Mais dois anos. O mandato termina daqui a dois anos. O
ministro colocou no último regime jurídico que a pessoa podia fazer dois
mandatos, mas não um terceiro. Acho muitíssimo bem. As universidades precisam
de renovação, não há interesse em que haja reitores a ficar muito tempo.
Curiosamente, nenhuma norma destas existe para os grandes centros científicos.
Nas grandes unidades de investigação uma pessoa pode ficar 20 anos. Foi sempre
esta espécie de dois pesos e duas medidas que foi muito difícil de gerir para
quem estava numa universidade.
Jamais
farei uma avaliação sobre o meu trabalho, as avaliações são para ser feitas por
outros e não por nós. É a coisa mais provinciana que existe, aqueles relatórios
que se publicam quando deixamos um cargo: “fomos extraordinários, avançámos
imenso”.
Uma
das iniciativas dos 100 anos da universidade são as 100 lições, dadas por
antigos alunos. Se desse uma lição, de que professores falaria, o que é que
diria?
Tive
dois professores absolutamente marcantes no liceu. Um foi o Professor José
Esteves, de Educação Física, que ainda é vivo. É uma grande referência da
democracia neste país, do pensar irreverente. O outro foi meu professor de
Filosofia, Luís Ardisson Pereira, que quando tinha 15 anos me levou a ler
aquelas coisas que são impensáveis para um miúdo de 15 anos, desde o Freud ao
Kant. Grande parte do que aprendi na vida devo ao Ardisson Pereira. Há uns anos
fui à procura dele, vim a saber que tinha falecido. Fiquei com imensa pena,
nunca lhe pude dizer isto que estou a dizer.
É
curioso que tenha citado dois professores de liceu e nenhum da faculdade.
Há
dois professores que me marcaram na universidade de Genebra. O Daniel Hameline,
director da minha primeira tese. Ainda hoje, quando faço discursos, penso nele.
Como
se ele estivesse na plateia?
Quase
como se estivesse comigo. Era um homem que alimentava a retórica do discurso
como nunca vi ninguém alimentar. Falava extraordinariamente bem, cultivava esse
gosto da palavra. Ainda é das coisas que mais gosto de fazer e o que sei fazer
melhor: dar uma boa aula ex cathedra. Dêem-me um anfiteatro e
dêem-me uma hora para falar às pessoas. O Hameline era francês, católico,
ortodoxo. Era um homem muito distante, mas no dia do meu doutoramento, no
final, (é a primeira vez que se aproxima de mim com mais intimidade, depois de
anos a trabalhar), diz-me: “Agora gostava de convidar todos os presentes para
um recital de órgão”. Ele era organista. Outro professor, que me convidou para
assistente na universidade de Genebra quando iniciei a minha carreira
universitária, foi o Pierre Furter. Foi ele que me introduziu nas questões da
comparação. Contrariamente ao Hameline, era suíço, protestante. Davam-se mal um
com o outro. Ainda hoje me correspondo com ele. Dedico-lhe o último texto que
escrevi, numa revista latino-americana, porque a presença dele no Brasil e na
América Latina desapareceu. Depois disso há duas teses de mestrado a falar
sobre o Furter.
E
assim se vislumbra a importância de se ser lembrado, de se ser referido.
Foi
uma das coisas que marcaram este centenário [da UL]. A vontade de recordar
pessoas, património, o que nos tem acontecido neste século. Pensamos que quando
perdemos a memória perdemos apenas o passado, mas não, perdemos o passado e
perdemos o futuro. Nem sempre foi fácil explicar isto às pessoas. Mas o futuro
só existe a partir de uma construção, de uma reflexão sobre as memórias, sobre
o passado. Não há futuro se não houver um trabalho sobre a memória.
Publicado
originalmente no Jornal de Negócios em 2010