quinta-feira, 25 de junho de 2015

CAMINHANDO COM AS PALAVRAS


 José Agostinho Baptista

Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.

Mas é assim:
metais que revestem a pele e as armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram, malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve à minúcia das rendas?

As mães?
Elas vinham cedo, eram como um rumor de levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mãos trabalhando sedas, afagos e
uma conspiração de cores e agulhas frias,
mães de silêncio bordando a treva e o sono, a longa
noite dos filhos.

Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.

Um estrondo de muralhas, diques, batalhas que
deflagram.
uma ciência aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a coroação do
sangue,
patíbulos onde uma cabeça se expande,
rolando com a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das mães.

Não quero um bordado de horas antigas,
uma prece no tear das suas mãos —
eu sei como se fundem as teias,
as lágrimas de quando se morre —

eu sei que chove.



José Agostinho Baptista, “Fossem estes dias”, Autoretrato (in Biografia),

Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp. 287-288.