José Agostinho Baptista
Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em
pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.
Mas é assim:
metais que revestem a pele e as
armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram,
malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve à minúcia das rendas?
As mães?
Elas vinham cedo, eram como um rumor de
levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mãos trabalhando sedas,
afagos e
uma conspiração de cores e agulhas
frias,
mães de silêncio bordando a treva e o
sono, a longa
noite dos filhos.
Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que
embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.
Um estrondo de muralhas, diques,
batalhas que
deflagram.
uma ciência aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a
coroação do
sangue,
patíbulos onde uma cabeça se expande,
rolando com a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das
mães.
Não quero um bordado de horas antigas,
uma prece no tear das suas mãos —
eu sei como se fundem as teias,
as lágrimas de quando se morre —
eu sei que chove.
José Agostinho Baptista, “Fossem estes
dias”, Autoretrato (in Biografia),
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp.
287-288.